Há 10 Anos, a Primeira Mostra de Games Brasileiros se realizava no Sesc São Paulo

A produção de games no Brasil, como se sabe, não é uma realidade nova; basta acompanhar o histórico de profissionais renomados como Renato Degiovani, Divino Leitão ou Alê McHaddo, que há décadas se dedicam ao ofício, para constatar esse fato, mas o levantamento dos produtos nacionais voltados à essa cultura e sua exposição para o mundo é um feito relativamente incomum, que somente nos últimos tempos tem ganhado maior expressão. Há 10 anos, o Sesc São Paulo lançava a pioneira Mostra de Games Brasileiros, evento que conseguiu englobar boa parte dos projetos mais relevantes daquele período e levar ao público um breve panorama dos trabalhos nacionais e do pensamento de seus produtores.

O Play’n’Biz conversou com alguns profissionais que participaram da Mostra e resgata um pouco desse histórico, hoje quase esquecido no cenário nacional, tanto no campo do Design de Games, quanto na área Cultural.

Mostra de Games na Mostra de Artes

Tradicional no cenário artístico paulista e nacional, a Mostra Sesc de Artes é um evento realizado hoje em edições bienais e responsável pela apresentação de inúmeras programações, voltadas às diversas linguagens culturais e artísticas, locais e internacionais. A equipe técnica arregimentada para a idealização das atividades da Mostra de Artes considerou, então, oportuno um mapeamento dos projetos de games ora desenvolvidos em solo brasileiro, e que já contavam com produções destacadas como Amazônia (1983), de Renato Degiovani, Monstruário (2001), da 44 Bico Largo (com a participação de Zé do Caixão na dublagem) e Outlive (2001), da Continuum, entre outros. O ponto de partida para este levantamento foi o livro, hoje já fora de catálogo, Game Brasilis, compilado pelo designer e ilustrador Alê MacHaddo e editado pelo Senac, no final de 2003.

Paineis Informativos da Mostra Games

Paineis Informativos da Mostra Games

Feito o contato, Alê MacHaddo foi contratado para realizar a curadoria de conteúdo da Mostra de Games junto ao técnico de programação do Sesc SP responsável pela área de Cultura Digital para o evento. “Dividida em categorias de acordo com as mídias relacionadas, cd-rom, internet, telefonia e outros, a Mostra reúne games desenvolvidos com especial enfoque na cultura brasileira”, informava o material de divulgação lançado para a Mostra de Artes, sobre o projeto de games. Paralelamente, foram ministrados cursos introdutórios a áreas específicas, como criação de música para games, construção de personagens e desenvolvimento de games. “Em 2004, havia duvidas até mesmo se o mercado existia de fato” rememora Bruno Drago, sócio da XuTi Game Development, que participou do evento com projetos de games e oficinas, apontando a pirataria dominante no mercado, a informalidade e o fato dos jogos serem vistos à época como um produto exclusivamente infantil.

O projeto aconteceu entre os dias 26 de junho e 04 de julho de 2004, e contou com a presença e participação de centenas de usuários nas salas de Internet Livre das unidades Belenzinho, Interlagos, Ipiranga, Itaquera, Santo Amaro e Santo André, que integravam a programação das atividades. Além da apresentação de artes dos games e das oficinas técnicas, o evento contou com a realização de palestras que apresentavam informações sobre os games e o processo de criação, tais como o Making of do game Mostruário, com Alê McHaddo, Making of do game Iracema, projeto do designer Anderson Guedes e Games em Linux, oficina conduzida por Bruno Drago. “Sempre houve empolgação em criar jogos em nossos cursos” disse Bruno, ao ser consultado sobre as características do projeto. “Mas como ocorre até hoje, as pessoas percebem que criar jogos é muito diferente de jogá-los. Sempre imaginei que as pessoas eram mais interessadas em aprender uma ferramenta eletrônica para criar jogos do que a teoria em si. A pratica, no entanto, tem mostrado que a discussão teórica sobre jogos mantém as pessoas muito mais motivadas do que a discussão de uma ferramenta”, pontua.

“Para mim, receber o convite foi algo realmente desafiador”, revelou André Sá Carneiro, então coordenador de sonoplastia da Oniria, que realizou a Oficina de Sonorização para Games dentro da Mostra. “Na época eu era um tanto ‘nerd’ demais, eu acho (risos), e também era muito tímido…. O que me desafiou nem foi tanto o conteúdo que eu explicaria, mas sim ter que me ‘expor’ para a turma. Foi realmente desafiador (risos)”, declarou em uma troca de mensagens online. “Mas o público estava bastante receptivo e fiquei admirado em ver aquelas pessoas na mesma idade que eu, tendo os mesmos interesses e tudo mais… Me senti num ambiente bem familiar”, resgata.

“Lembro bem que algumas oficinas tiveram um feedback bem bacana, como por exemplo, uma do Chico Ortiz, de games com o Blender, talvez a primeira oficina sobre o assunto ministrada no SESC”, puxa pela memória Paulo Barbeiro que, naquele momento, integrava a equipe de instrutores de Cultura Digital do programa Internet Livre no Sesc São Paulo. “Uma galera de Ferraz de Vasconcelos [cidade próxima à zona leste da capital paulista e uma região de poucas oportunidades profissionais e para o aprendizado técnico] foi até o Sesc Itaquera para fazer o curso. Foi bem legal!”.

Mostra Curupira Varginha Alpha Hades2

Jogos: Curupira, Incidente em Varginha, Impacto Alpha e Hades2, disponíveis na Mostra

Jogos Disponíveis na Mostra

O ponto alto do projeto para o grande público, no entanto, era a presença dos games, disponibilizados pelas empresas nacionais desenvolvedoras. Alguns projetos, como os jogos da Locz, Devworks [sites hoje inexistentes] e do Tilt [de Renato Degiovani, ainda na rede com farto material disponível], eram oferecidos online, diretamente através da navegação pelos respectivos sites, bem como Erínia, RPG online da Ignis Games, recém-lançado naquele ano, e que contava com grande apelo e destaque na mídia. Outros jogos, foram encaminhados por seus realizadores no formato CD-Rom, para uso nos computadores.

“Na Mostra, colocamos os jogos nos computadores pra galera jogar e a molecada gostou bastante…”, relembra Paulo Barbeiro. “Mas tínhamos poucos exemplares [dos jogos] e nem sempre todo mundo conseguia jogar o que queria”, relata. “O tempo de uso também era pouco pra alguns jogos, como o Monstruário, ou o Outlive”, ressalta, com razão, pois alguns dos jogos presentes detinham um arco narrativo mais complexo e exigiam maior tempo para exploração.

Imagens de Amazônia - Game de Renato Degiovani

Imagens de Amazônia – Game de Renato Degiovani

“São muito importantes todas as iniciativas que visam juntar produtores e produtos brasileiros e não existiam iniciativas como essa com frequência naquela época”, informou Renato Degiovani, que não pode participar da iniciativa na ocasião, mas gentilmente enviou seus projetos para a experimentação do público. “Em 2004 a gente estava num momento de retomada de esperanças, porque a bolha pontocom já tinha passado e o mercado começava a reagir”, esclarece, destacando a presença de jogos marcantes na Mostra, como Incidente em Varginha, da Perceptum (1998), ou Hades 2, da Espaço Informática (2001), que atraíam um grande público pela novidade e qualidade de produção. “A produção de jogos nacionais originais e feitos para o mercado brasileiro deu uma boa parada logo depois desse período, por conta das dificuldades e custos de produzir jogos em caixinha”, relembrou Degiovani, pioneiro na utilização da rede como canal de divulgação e venda de jogos no Brasil, com o site Tilt.

“Não havia muita gente disposta a apostar na internet como meio de distribuição (venda por download) e mesmo a operacionalização do comércio online era complicada, pois as operadoras de cartão de crédito não viam com bons olhos as micro transações”, argumentou.

Telas do game Outlive

Telas do game Outlive

Para a Mostra, foram disponibilizados os já citados Amazônia, Incidente em Varginha, Hades 2, Outlive, da Continuum (2000), O Enigma da Esfinge, da 44 Bico Largo (1996), Caxi Gambá encontra o Monstruário (2000) e os projetos Impacto Alpha, da Oníria Entertainment (2003) e trabalhos da Xuti.net, entre jogos de nave, tiro e outros.

“Lembro que no Interlagos tinha uns PCs com uns jogos desses, tenho quase certeza que joguei aquele de nave que o menino tá jogando [na 4ª foto do painel das Internet Livres, logo abaixo]. Foi em 2004, numa excursão da escola e ‘talz’ (Sic)… Fugi da piscina pra jogar o shooter *-*”, escreveu o internauta Genji nos comentários de um post no blog RetroGamesBrasil, que informava sobre a realização do evento. “Montamos uma distribuição exclusiva de jogos com os drivers disponíveis na época, de forma a tornar mais fácil a experimentação em Linux”, resgatou da memória Bruno Drago, afirmando que a vivência com games foi um sucesso durante a Mostra realizada. “No total, somente com oficinas, distribuímos mais de 600 copias do XuTi Linux”, o programa de jogos utilizados no evento e compilado em CD.

Iracema, Monstruário e Erínia - Games da Mostra

Iracema, Monstruário e Erínia – Games da Mostra

10 Anos de Mercado Nacional de Games

Hoje, passados 10 anos desde a realização do primeiro mapeamento de jogos digitais da nação, o mercado parece incrivelmente diferente do que já foi, pleno de sistemas de interação e downloads por meio de smartphones e gadgets móveis, algo certamente impensável na ocasião. “O advento das lojas virtuais e o pagamento online para a aquisição de jogos e microtransações dentro dos games era um universo inatingível naquela época em que a velocidade de uma banda larga mal alcançava 1 mega”, comentou um profissional da área de Cultura Digital do Sesc São Paulo, consultado por telefone.

“Me lembro do trabalho que tínhamos na época para, por exemplo, gravar os efeitos sonoros. Sem ter os microfones específicos, sem o tratamento acústico ideal na sala de gravação, esperando chegar a madrugada para não haver interferências sonoras externas, e por ai vai…”, disse André Sá, relembrando as dificuldades daquele período. “Me lembro também de lidar constantemente com as imperfeições da plataforma de programação dos jogos e consertar os famosos ‘bugs’… Era muita coisa na base do improviso, mas que no final das contas acabava saindo…”, retoma, entre risos, para finalizar com certo saudosismo: “Na época, era difícil o acesso a informações tão especificas como ‘aprenda a fazer sonoplastia para jogos’ ou ‘desenvolva uma engine sem bugs’, mas foi uma experiência muito importante pra mim e tenho ótimas lembranças, pois estávamos unidos na alegria e na tristeza para fazermos o ‘impossível'”.

Como afirmou Degiovani, foram tempos difíceis e há quem tenha deixado o sonho de lado, fruto desses reveses. “Muita coisa evoluiu de lá pra cá, mas eu não quis acompanhar”, comentou Anderson Guedes, criador do promissor projeto Iracema (2003), quando perguntado sobre o período da Mostra até hoje. “Fiquei muito decepcionado com o mercado, as oportunidades e os oportunistas…”, declarou. “Daí, coloquei o game na gaveta e virei videografista […] não da pra viver de sonho nesse país”, enfatizou na conversa.

Advergames presentes na Mostra

Advergames presentes na Mostra

“Depois de 2005, as empresas foram migrando para os advergames ou para os jogos de celular, como uma forma de escapar dos baixos resultados que o mercado brasileiro andava apresentando”, explica Renato Degiovani. “Até que veio de fato a globalização, por volta de 2011, 2012, e, com ela, a revolução das lojas virtuais e dos jogos casuais como o grande filão de vendas”, completa. “No aspecto técnico de produção e design evoluímos bastante, mas perdemos muito tempo e espaço na criação, a ponto das produções originais brasileiras praticamente deixarem de existir”, continua. “Só agora as pessoas estão percebendo o grande furo que foi deixar esse mercado desprotegido”, finaliza.

Fazendo coro com as ponderações de outros designers, Bruno Drago afirma que há melhorias e problemas no modelo atual no país: “O mercado de desenvolvimento melhorou de forma geral. A internet e a criação de lojas online permitem hoje a distribuição de seu jogo diretamente ao consumidor, de forma mais ágil e mais barata. A criação de formas de pagamento eletrônicas como paypal, pagseguro e financiamento coletivo como catar.se e kickstarter ajudam muitos projetos a levantarem fundos de forma descentralizada e o próprio enquadramento de jogos na Lei Ruanet leva a possibilidades diferenciadas de financiamento, tornando um pouco mais fácil a vida do desenvolvedor que quer tocar um projeto de forma profissional. Entretanto, nem tudo são flores. Como estamos no Brasil, os grupos/estúdios em grande parte das vezes só se viabilizam se todos forem amigos/sócios, pois contratar alguém leva a uma carga tributaria trabalhista proibitiva”, postula. “Jogo é fonte de trabalho no Brasil, com trabalhos freelance, mas não é fonte de emprego”, alerta o produtor, que é também advogado especialista em Direito Digital.

Outros Advergames presentes na Mostra

Outros Advergames presentes na Mostra

O Legado da Mostra

Apesar do ineditismo do feito, a primeira Mostra de Games Brasileiros é um evento quase inexistente no panorama das grandes realizações da linguagem no Brasil. Isso em parte corresponde ao próprio período que, como citado, carecia de um olhar profissional de outros setores sobre si e de um entendimento mais efetivo da proposta como expressão cultural, problema ainda hoje observado, se considerarmos os erráticos pronunciamentos de ministérios e representantes da política, e a escassez de programas consistentes por parte dos governos em qualquer esfera de poder para esta linha de produção.

Salas de Internet Livre durante a Mostra de Games 2004

Salas de Internet Livre durante a Mostra de Games 2004

Muitos projetos e empresas já existentes à época não estiveram presentes nesse painel de produções nacionais, em virtude de impossibilidades com as agendas ou fruto das limitações de valor para os custos de traslado e permanência dos profissionais durante a realização do evento. Divino Leitão, apresentado logo no início desse artigo, e responsável pelo projeto Cavernas de Marte (1983), os jogos da Southlogic Studios, ATR Multimidia, Apollo Entertainment e Jinx Playware, entre outros, são exemplos de tenacidade profissional e perseverança em um ambiente de difícil criação e condições inóspitas, porém incapazes de vencer o desejo de produzir trabalhos que fizessem uso da melhor tecnologia disponível e de toda a inventividade e diversidade de nossa ampla cultura brasileira.

A Mostra de Games Brasileiros, ainda que aparentemente banida da história cultural do país, foi um marco na identificação dessa produção como cultura de massa, com qualidade técnica e brilhantismo como poucas vezes se viu em outros empreendimentos nacionais ligados a essa vertente cultural.

Logos das Empresas participantes da Mostra de Games Brasileiros 2004

Logos das Empresas participantes da Mostra de Games Brasileiros 2004

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