Game como Mídia: Lições da História da Leitura – Por Roger Tavares

A epígrafe acima bem poderia estar se referindo aos malefícios de algum mal contemporâneo, como costumeiramente são denegridas diversas das mídias atuais, como a televisão ou os videogames. Entretanto, Peter Burke (1992, 218-219), ao resgatar um folheto de 1795, de J. G. Heinzemann, encontra tal citação referindo-se a um provável mal de outra época: a leitura.

Conforme o ser humano vai tornando-se mais complexo ao passo de sua evolução, as mídias que este usa para se comunicar devem suportar e se adequar a tamanha complexidade. Embora seja um trabalho difícil se estudar o ser humano em épocas distintas de sua evolução, os trabalhos de pesquisa na área de Arqueologia das Mídias têm nos oferecido descobertas surpreendentes, não apenas na evolução e na compreensão das mídias e da comunicação, como era de se esperar, mas principalmente no entendimento desse ser complexo e enigmático: o ser humano.

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Prof. Dr. Roger Tavares

Tal ser é um animal social, e a principal ferramenta que este dispõe para tamanha socialização é a sua comunicação. Os meios que este usa para se comunicar, da sua fala à sua escrita, seu próprio corpo, ou mesmo os computadores e videogames são conhecidos pelo nome técnico de meios de comunicação, ou mídias, como adotado por Lúcia Santaella (2000) e outros pesquisadores. Os grupos sociais, independentes de sua complexidade, dos índios ao cosmopolita, apropriam-se dessas mídias, entendendo-as e utilizando-as conforme a sua intimidade com estas. Algumas mídias mais antigas, como a mídia impressa, representada por livros e revistas, entre outros, já se encontram compartilhando de um senso comum bastante difundido.

Aparentemente todos conhecem-nas e sabem utilizá-las de maneira melhor ou pior. Outras, mais novas, como os videogames ou os computadores, desafiam o imaginário e a tradição de grupos estabelecidos e sedimentados, e tentam se desenvolverem e se imporem para que possam mostrar para o que vieram ao mundo.

Novas Mídias

É muito difícil tentar se definir o que é uma Nova Mídia, ou quando uma mídia deixa de ser nova, ou se torna estabelecida, velha ou obsoleta. Diversos estudos como os de Manovich (2001) ou de Bolter (1999) têm debatido sobre essa preocupação e das conseqüências técnicas, lingüísticas e sociais, que dela advém. Mas, apesar de difícil, uma coisa que se pode ter certeza, é que toda mídia em seu estágio inicial, imaturo, sofre uma série de críticas e análises, normalmente ideológicas, pois seu surgimento sempre traz consigo o surgimento de uma legião de apocalípticos e integrados, para se usar a famosa nomenclatura cunhada pelo lingüista e medievalista Umberto Eco.

Com o aparecimento de um novo meio de comunicação, diversas estruturas podem ser abaladas, ou mesmo rompidas. Algumas pessoas e instituições por ignorância ou interesses, culturais ou econômicos, na manutenção das mídias anteriores passam a criticar negativamente contra o novo, mesmo sem procurar entendê-lo a fundo. Outras, por sua vez, mas normalmente pelas mesmas razões, passam a militar contra a mídia anterior, e uma parcela bem menor, procura analisar o fenômeno, sendo o mais neutro possível. Embates como esse acontecem, por exemplo, entre o jornal e a televisão, que colocam em extremos opostos a verdade, a alta cultura, a difusão, e o entretenimento, como se fossem vetores excludentes e onipotentes.

Torna-se quase desnecessário lembrar que com a entrada dos despretensiosos joguinhos de computador, agora mostrando suas garras como os poderosos videogames e computer games, as legiões de apocalípticos e integrados iniciam o seu levante, o seu avanço, obviamente, em nome da cultura e da sociedade, mas em última análise quase sempre em seu nome, sua preocupação particular. As vítimas potenciais desse “vilão” devastador do cérebro de nossas crianças e adolescentes [sic] já iniciam a aparecer. Entre indústrias e instituições, como a indústria de entretenimento, tais quais a cinematográfica e a musical, que agora encontram um concorrente de peso no seu mercado, abalando suas vendas e desestruturando seus lucros, mas também as instituições de ensino, religiosas, e até mesmo governos, entre outras, que muitas vezes escondem seu poderio  econômico através de discursos ideológicos apoiados na ética, na moral, nos costumes e nas tradições.

BookLivro como Nova Mídia

Muitas vezes, discursos como os anteriormente citados, desconhecem ou não divulgam, os antecedentes que envolvem sua própria mídia, agora tradicional. O próprio livro, que hoje é o representante maior da alta cultura, da verdade, e tradições como ciência e religião, teve a sua fase de Nova Mídia, e sofreu diversos ataques, tais quais os videogames sofrem hoje. Apenas para citar alguns: superficialidade, entretenimento, promiscuidade, violência e saúde.

O poder da palavra escrita já foi posto em dúvida no Fedro de Platão (1997), a favor dos diálogos filosóficos de sua época, que ficariam enfraquecidos se a presença do autor (275e), pois estas não tem como defenderem-se sozinhas (276c).

A palavra impressa por sua vez, ao atingir a difusão popular através da leitura extensiva, nos idos de 1800,  era vista pela maior parte da população como um meio de entretenimento, como pode se constatar pela pesquisa levantada na mesma época na Alemanha e na Nova Inglaterra por David Hall e Rolf Engelsing (Burke, 1992:207), que  constataram através dos empréstimos da bibliotecas alemãs, inglesas e americanas,  em fins do século XIX, que 70% a 80% dos empréstimos eram ficções leves, como novelas, 10% eram livros de história, biografias e relatos de viagens, enquanto menos de 1% eram livros religiosos. Note-se que os autores se referem a ficções leves pois a pornografia, embora diferente da de hoje, já aparecia em pleno século XVIII como um tipo de livro muito difundido, e muitos romances eram atacados por incitar o desejo do leitor (Hunt:1999, 37).

A visível utilização do corpo do jogador durante o jogo, tem sido através da antiga separação da importância do corpo e da mente, relacionada ao entretenimento e a violência. A postura ativa de interação com o game, aparece diametralmente oposto a leitura, que tradicionalmente é vista como um ato contemplativo, interiorizado, quase espiritualizado, o que por muitas vezes desmereceu os esportes considerando-os violentos e primitivos, e artes hoje não menos consagradas, como a dança e o teatro. O que acaba se deixando de lado, é o passado da leitura que é predominantemente oral, e demora séculos para se estabelecer como silenciosa. Quer nas estalagens, na beira da fogueira, ou no serviço, a leitura tinha um caráter social, coletivo, e não individual. Alfaiates e artesãos se revezavam na leitura, para ajudar na distração de ofícios repetitivos (Burke:1992, 215-216), como se faz com os equipamentos de rádio hoje.

Quanto à violência, a televisão parece normalmente ser o meio eleito para as discussões a esse propósito, por se apresentar à família inteira ao mesmo tempo, ao passo que os games normalmente se limitam ao quarto dos adolescentes. Embora os games em rede tenham um poder de abrangência por vezes superior a programas de televisão, isso foge do escopo deste texto, mas quando não apenas o livro, mas a própria leitura são apontados como violentos em pleno século XVI, retomamos o nosso foco: as comparações entre game e livro enquanto novas mídias.

Roger Chartier (1999, 100), um dos mais consagrados historiadores do livro hoje, toma mão de descrições da leitura como “um perigo para a ordem pública, um narcótico (expressão usada por Fichte), ou como um desregramento da imaginação e dos sentidos”. Em sua história das classes subalternas, o historiador Carlo Ginzburg (1999) relata a Santa Inquisição atribuindo a culpa da heresia a leitura que poderia ser praticada de maneira agressiva até nas obras da ordem social.

Nas questões da saúde, o livro também não passou ileso, como o game atualmente acusado de fazer mal à vista, à coluna, e promover o sedentarismo. Muitos especialistas da época chegaram a concordar com as opiniões como as de Heinzemann, como apontadas na epígrafe deste texto, embora alguns como Johann Adam Bergk, discordem de suas conclusões, alegando que “nunca se deveria ler imediatamente depois de comer, ou quando se está de pé” (Burke:1992, 218-219). Os games hoje começam a ser absorvidos pela gigantesca onda de mobilidade que assola não apenas as telecomunicações, mas a informática e o entretenimento. Como as tribos smart mobs que se deslocam dinamicamente orientadas por celulares, clãs de gamers com celulares, GPS e consoles portáteis, saem de suas casas para jogar na rua. O mito do individualismo e da reclusão solitária dos geeks (usuários quase viciados em novas tecnologias) é derrubado pela socialização provocadas pelas lan-houses e seus encontros e festas, as lan-parties.

Apenas para encerrar este pequeno ensaio provocativo, uma pequena investigação na arqueologia das mídias das lan-houses, nos mostram nem mesmo tal fenômeno é tão contemporâneo quanto nos possa parecer. Podemos encontrar em pleno século XVIII, espalhados por diversos lugares, os Clubes de Leitura, como os de propriedade do Sr. Bernard, que o historiador do livro Robert Darnton, nos apresenta (Burke:1992, 236), como contendo  “todos os recursos literários que pudessem desejar”, uma época em que o material impresso era bem mais oneroso do que hoje. Embora “recursos literários” não seja, nos dias de hoje, exatamente o caso das lan-houses, estas apresentam uma grande diversidade de jogos, máquinas e redes de alta velocidade, a um custo muito baixo, e com bastante espaço e guloseimas para se reunir a galera gamer.

Próxima Fase

Para não estender muito este texto introdutório a arqueologia comparada das mídias livro e game, gostaria de encerrá-lo com uma provocação um pouco maior do que todo o texto possa ter sido.

O viés adotado de se escavar os preconceitos que o livro sofreu enquanto Nova Mídia, relacionando-o com os games de hoje, não tem nenhuma intenção em atacar a alta cultura, ou de se militar a favor de mídias em fase de crescimento. Uma parte dessa pesquisa faz vezes a uma pesquisa muito maior, iniciada em 1999, em que estudo os meios digitais como mídias que potencializam o ser humano, rumo ao que se chama hoje de pós-humano. Uma das aplicações dessa pesquisa são os sistemas de educação e treinamento, e a provocação que procuro deixar a este final é indagar, o quanto os atuais games ainda tem por se desenvolver. No mínimo uma evolução como a do livro. Não apenas tecnicamente, mas simbolicamente. Quando destravarmos o potencial comunicacional que se esconde atrás desses games, e a redução dos preconceito é essencial para isso, será que é possível se imaginar o quanto podemos incursionar em novas formas de comunicação, mais poderosas e eficientes do que nunca? Incursões lingüísticas, poesias, cinema, animação, música, e todas as aplicações que isso pode gerar, como educação, recursos humanos, psicologia, idiomas e uma diversidade inimaginável de atributos que o tal ser humano ainda está por revelar.

Agradecimentos especiais a Profa. Leda Tenório (PUC-SP) e ao Prof. Winfried Nöth (Universidade de Kassel, Alemanha), que muito colaboraram nas propostas deste texto.

Bibliografia
BOLTER, Jay & BRUSIN, Richard (1999). Remediation: Understanding New Media. Massachussets, USA: MIT Press.
BURKE, Peter (1992). (org.). A escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: Unesp.
CHARTIER, Roger (1999). A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Universidade de Brasília.
GINZBURG, Carlo (1987). O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido. São Paulo: Cia. das Letras.
HUNT, Lynn (1999). (org.) A invenção da pornografia: obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800. São Paulo: Hedra.
MANOVICH, Lev (2001). The Language of the New Media. Massachussets, USA: MIT Press.
PLATÃO (1997). Fedro. Tradução: José Ribeiro Ferreira. Portugal: Edições 70.
SANTAELLA, Lúcia (2000). Cultura das Mídias. São Paulo: Experimento.

Roger Tavares é pesquisador em cultura do videogame (desde 1999). http://about.me/rogertavares
Esse texto foi escrito originalmente em 2005 pelo Prof. Dr. Roger Tavares e está postado no Play’n’Biz com permissão do autor.

Vista do interior da nova sala Boullee
 

1 comentário a "Game como Mídia: Lições da História da Leitura – Por Roger Tavares"

  1. Fantástico o artigo.

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