Opinião: Noobies também querem Hardgames!

Em uma comunidade virtual, nos idos de 2010, o comentário de um hardgamer perguntava porque todos os jogos eram tão fáceis de serem jogados (mesmo no modo “Ultra-High-Over-Power”). Esta opinião me chamou a atenção e me deixou intrigado: como medir “fácil” ou “difícil” em uma experiência virtual aberta a tantos e tão diferentes jogadores? Não faltam opiniões na rede que corroboram este pensamento, mas o princípio talvez se aplique apenas aos nascidos digitais ou jovens da Geração Y, que tiveram a oportunidade de crescer rodeados de eletrônicos para além das calculadoras científicas, comuns à época do lançamento dos primeiros relógios digitais da Cassio.

As reflexões a seguir, idealizadas na ocasião em que o comentário online fora postado, tentam pesquisar (mais do que responder!) estas inquietações e as buscas por novos horizontes de entretenimento digital. Serão os games de hoje realmente mais fáceis de jogar na tentativa de atender aos gamers que buscam diversão, mais do que desafios? E, em caso afirmativo, tais propostas de entretenimento digital estarão dando conta de atender aos migrantes digitais, isto é, àqueles que iniciaram sua jornada pelos games em idade superior a duas décadas de existência? O trabalho em questão é resultado destas ponderações e foi lançado originalmente no site GameCultura, do Prof. Dr. Roger Tavares, em abril de 2010, mas alguns pontos de seus questionamentos parecem ainda atuais e levantam dúvidas quanto ao alcance das iniciativas de design para público mais maduros.

Processo Evolutivo de Jogos e Gamers

Pertenço àquela velha geração que conheceu vídeo games através do controle “botão+alavanca” do Atari e, quando da chegada do console em território nacional, já não era mais um adolescente. Naquela época, os jogos disponíveis em arcades ou nos primeiros cartuchos mostravam níveis de dificuldade variados, como as 256 etapas de jogo de Pacman, a velocidade crescente e angustiante de Space Invaders ou as diferentes opções de dificuldade presentes em Tempest, por exemplo. Ainda assim, talvez por pertencerem ao alvorecer do processo criativo dos jogos eletrônicos, estes games conseguiam divertir experts e novatos, sem distinção do grau de qualificação do usuário.

Space Invaders, Tempest e Pacman; Três projetos do início dos games

Space Invaders, Tempest e Pacman; Três projetos do início dos games

Dos dois bits para cá, com os sucessivos aprimoramentos tecnológicos, duas coisas aconteceram: os fãs da linguagem foram se tornando cada dia mais hábeis e, para satisfazer este incessante apetite dos jogadores por desafio, os games se transformaram rapidamente em uma cultura de nicho especialista, diferentemente das outras mídias como cinema, tv, livros etc que, embora também realizassem seus projetos hardcore, como Ulisses, de James Joyce, ou os filmes de Alejandro Jodorowsky, souberam manter a vertente popular, conquistando simpatia global e audiência seleta, simultaneamente.
Ao longo destas décadas, com a segmentação do design de games para hard users, a grande maioria de nós, mortais, tornou-se um contingente de não-jogadores. Até aí, aparentemente tudo bem, da mesma forma como a maioria de nós não entende linguagens de programação ou desenvolve modelagens em 3D.

O problema é que os games nunca deixaram de evoluir e, com isso, transformaram-se em um fenômeno de entretenimento muito atraente para todas as idades e gerações, capturando a atenção de muitos que, por anos, viram esta mídia apenas como um brinquedo ou um apêndice da Cultura Digital.
De algum tempo para cá, outros fatores se somaram, aumentando o poder de sedução do veículo: a impressionante capacidade de processamento gráfico dos novos consoles, as possibilidades de inovação narrativa nas tramas dos games (proveniente de uma nova fornada de Game Designers que cresceu jogando nos primeiros consoles) e a revolução no modo de interagir com o meio, realizada pelo aparecimento equipamentos de grande apelo casual, como o console Wii, da Nintendo (ao qual Ralph Baer, o pai do Odyssey, ressaltou em entrevista que “retomara a ideia original da diversão em família”, o Kinect, da Microsoft, ou os mobiles e smartphones, que abriram novo campo para os projetos de jogos.

Desafios e Curva de Aprendizado

AliensHá alguns anos, aconteceu-me um fato curioso: estive frente a frente com um Xbox 360, um punhado de mídias de jogos e, o mais importante, tempo para curtir a brincadeira! Aproveitei a oportunidade para ver como as gerações mais avançadas em idade conseguem se virar com a máquina sem ajuda de jogadores mais experientes. O resultado da interação até não foi dos mais vexatórios: soube como colocar e tirar os jogos da bandeja do leitor(!) e até consegui configurar algumas coisas, sinal de que alguém com boa vontade e acesso pode conseguir progressos, mesmo se tiver perdido duas ou três gerações de consoles. Apesar disso, já na etapa seguinte, durante a experiência do jogo, algo interessante aconteceu: os tutoriais, embora graficamente belos e atraentes aos olhos, eram monótonos e arrastados e, em um dos casos, eu sequer consegui passar a fase introdutória de aprendizado do jogo, em virtude de minhas óbvias limitações com a habilidade dos controles. Isso foi frustrante, pois os objetivos do jogo ainda não estavam claros para mim e eu já não conseguia prosseguir, percebendo que demoraria ainda algum tempo até ser capaz de cumprir as determinações mínimas do game.

Por meio de análises de sites e revistas, eu já conhecia a ideia e a narrativa dos jogos e isso tornava tudo muito pior, pois eu sabia exatamente o que estava perdendo!

É claro que sempre é possível aprimorar o desempenho (ao que chamamos tecnicamente de “curva de aprendizado”), mas o tempo que precisaria ser gasto para dar sequência ao jogo (e a quantia absurda de tentativas e erro antes de “chegar lá”) certamente tiraria muito do prazer da viagem.

Alguns poderão argumentar que o que nos move através de um jogo é justamente a sensação de desafio e o aperfeiçoamento de nossa jogabilidade, mas penso que isso é apenas parte do processo, e não necessariamente a etapa de maior interesse para certa parcela dos potenciais interessados na linguagem dos jogos. Talvez eu pertença a um tipo diferente de gamer (ainda a ser identificado!), menos desejoso de auto-superação e mais interessado em realizar feitos heroicos em uma instigante trama narrativa. Infelizmente, este desejo pode estar longe de se concretizar em vista do abismo existente entre aquilo que os jogos atuais exigem e a performance que as habilidades de minha geração de usuários é capaz de oferecer. Acredito que seja talvez nesse ponto que reside o drama do Game Design contemporâneo: com medo de arriscar no novo, as desenvolvedoras não fogem do nicho de mercado e reciclam as mesmas velhas ideias e mecânicas, tornando a experiência do jogar apenas tecnicamente mais difícil, sem atingir aquele novo público de não-jogadores.

Games para Todos

Grandpa GamerVolto agora à pergunta expressa no início do texto: como tornar os jogos mais atraentes para hardgamers e noobies em uma mesma proposta de entretenimento digital? Talvez fosse o caso de as desenvolvedoras criarem um modo “Overdrive Express” de jogo, que permitisse ao gamer novato vivenciar a trama e superar com mais facilidade os combates e desafios, para poder curtir o enredo, de forma inversamente proporcional ao que vemos hoje no andamento de muitos jogos, onde o gamer “pula” as cutscenes da trama para ir direto para a próxima fase do quebra-quebra.

Embora pareça uma ideia infundada, é impossível não considerar o imenso trabalho da equipe de roteiristas, artistas e produtores, tão atentos em criar um ambiente verossímil para o jogo, com uma tessitura dramática densa para seus jogos, belas imagens e um level design consistente e bem elaborado, e ver que a esmagadora maioria do público padrão de games não dá se atém a tamanha riqueza de criação.

Paralelamente, imagino que, assim como havia um público latente de não-jogadores em busca de diversão simples (que a Nintendo soube capitalizar de forma brilhante em muitos de seus consoles no passado), talvez haja também um público para mídias interativas a quem se possa proporcionar uma plena e satisfatória imersão nos games atuais se as desenvolvedoras e seus criadores forem capazes de idealizar formas mais envolventes de interação e menos complexas no que tange aos desafios da jornada e na interface de jogo. É possível que as produtoras ainda não tenham se apercebido desse potencial e da importância de atender hostes de interessados ainda desatendidos, focadas somente no terreno seguro dos jogadores de alto desempenho. No entanto, segundo informações recorrentes, não são poucas as franquias que apresentam problemas em fazer caixa com seus novos lançamentos, especialmente com as mudanças de tecnologia exigidas pelo lançamento de consoles mais complexos, como a atual geração.

É fato que, em outra vertente, os gadgets portáteis e aparelhos mobiles têm oferecido contrapartidas em suas lojas online, com produções diversificadas e indie games capazes de oferecer lazer de qualidade por meio de jogos casuais de grande impacto visual e alto teor de penetração social, a exemplo de Candy Crush, Crazy Taxi, Device 6 ou Heartstone, para ficar em poucos exemplos, mas esta parcela não atende ao desejo por projetos mais densos e impactantes, em termos de narrativos ou épicos, como o fazem muitos dos jogos de primeira linha dos consoles atuais. Atento, nesse caso, para aqueles neo-gamers que por qualquer motivo não são capazes de alcançar as habilidades necessárias para progredir através dos jogos triple A, mesmo com inúmeras horas de treinamento, com o uso de cheats ou quaisquer outras alternativas. Uma sensação frustrante, similar à ideia de ter lido três quartos do livro e não saber o fim da história… Ou de ser retirado do cinema no meio de um filme épico! Recorro, a título de exemplo, para o caso de uma moça que adorou jogar “Gun”, para PS2. Segundo relatou, a jogadora quase finalizou o game, mas deparou-se com uma fase impossível de ser transposta, mesmo recorrendo aos “detonados” existentes na rede. Parece justo com o jogador que pagou (e caro!) pela mídia, visando ter uns bons momentos de lazer e entretenimento pessoal? Quem, em sã consciência, assistiria a 200 capítulos de um dramalhão da tevê e, ao final, desejaria espontaneamente abrir mão de descobrir o fatídico destino da Carminha, de Avenida Brasil, ou de Odete Roitmann, de Vale Tudo?

Dramaturgia e tensão nos games: para todas as idades

Dramaturgia e tensão nos games: para todas as idades

Pode soar utópico, certamente, mas creio que é mais do que hora de exigirmos das empresas uma atenção para as necessidades aqui observadas. Em vista do imenso trabalho realizado pelas equipes de designers do jogo ao longo do processo de criação, o gigantesco investimento no produto e o potencial representado pelos não-jogadores (normalmente ávidos consumidores de outros formatos midiáticos, como novelas, livros, filmes, música etc.) ouso afirmar que é só uma questão de tempo até que alguém tenha o primeiro insight e saiba aproveitar esta confluência de fatores, criando um game (ou a primeira leva deles!) que ofereça interação, imersão e jogabilidade de forma equilibrada e adequada ao nível de resposta deste novo consumidor. Não por acaso, já em 1997, em sua obra “Hamlet no Holodeck”, Janet Murray se referia às experiências ficcionais interativas dos ambientes virtuais como “web soaps”, em clara referência à cultura televisiva e a forma tradicional como acompanhamos as tramas ficcionais convencionais. Considere as donas-de-casa e fãs de “Marley e Eu” ou “Maria do Bairro” se derretendo em lágrimas com a morte dramática de Aeris em Final Fantasy ou vivendo a tensão da escolha entre os livros de Atrus e seus filhos Sirrus ou Achenar, para salvar a terra de Myst. As possibilidades são praticamente infinitas se produtoras de gamers souberem unificar a linguagem digital dos games à expectativa destes públicos não tradicionais de games.

Se não estamos nem perto do Holodeck alardeado por Janet Murray para Hamlet, podemos ao menos considerar que estamos no caminho certo para vivenciar uma epopeia imersiva e comovente com a atual geração de consoles, por meio de histórias que saibam se apropriar das linguagens ancestrais da comédia e da tragédia gregas, mais do que no furor apocalíptico de Metal Gear. Se as empresas de games se inclinarem para uma ampliação de sua base de jogadores, é possível que, no médio prazo, um sem número de donas de casa, aposentados,  senhoras e senhores de meia idade e profissionais das áreas mais diversas sem qualquer relação com a Cultura Digital estejam também entre as legiões de novos jogadores, aproveitando o que de melhor a linguagem poderá oferecer.

Artigo originalmente criado para o site GameCultura, postado em abril de 2010 e atualizado para o Play’n’Biz

2 comentários a "Opinião: Noobies também querem Hardgames!"

  1. Junior Carvalho | Dezembro 27, 2014 às 3:04 am |

    Peço primeiramente desculpa por não postar um comentário a altura do post, mas no momento estou muito cansado para tal..
    Ótimo artigo, creio que muitos não o irão ler completo, mas sim, ótimo mesmo, dificil achar alguém que tenha tanto interesse em escrever dessa maneira..
    Parabéns

  2. Grato pelos comentários, Carvalho!
    O Play’n’Biz continuará mantendo o padrão dos artigos, focado na seleta audiência da linguagem e cultura dos games.

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